CARL GUSTAV JUNG
“Nossa ciência, entretanto, é baseada no princípio da causalidade,
o
qual é considerado uma verdade axiomática.”
Jung
Psicólogo e
psiquiatra suíço, adepto e colaborador de Freud. Sua doutrina se baseia no
conceito do “inconsciente
coletivo”, que é a
expressão da alma da humanidade que se formou e que continua se desenvolvendo.
Jung criou a
distinção entre os tipos: extrovertidos e introvertido.
Jung fala de sua
teoria de Sincronicidade.
Afirmou que com a
ajuda do I Ching é possível à realização completa da capacidade inata do
homem, confiando no fato de que ele é um microcosmo.
Abaixo verão o
prefácio do livro de Richard Wilhelm – I Ching – O Livro das Mutações – escrito por Jung.
Prefacio de Jung1
Não sendo um sinólogo, meu
prefácio ao Livro das Mutações terá que ser um testemunho da experiência
pessoal com esse grande e único livro. Ao mesmo tempo terei a grata
oportunidade de homenagear também a memória de meu falecido amigo Richard
Wilhelm. Ele próprio tinha profunda consciência da importância cultural de sua
tradução do I Ching, versão sem paralelo no mundo Ocidental.
Se o
significado do Livro das Mutações fosse de fácil apreensão, a obra não
precisaria de um prefácio. Mas sem dúvida esse não é o
caso, já que há tantos pontos enigmáticos em seu conteúdo que os estudiosos
ocidentais tenderam a considerá-lo como um conjunto de "fórmulas
mágicas" que, ou seriam abstrusas demais para serem inteligíveis, ou
careceriam de todo valor. A tradução de Legge do I Ching, até agora a única
versão disponível em inglês, pouco contribuiu para tornar a obra mais acessível
à mente ocidental.2 Wilhelm, entretanto, fez o esforço possível para
abrir o caminho à compreensão do simbolismo do texto. Ele tinha condições de
fazê-lo, pois a filosofia e o uso do I Ching foram-lhe ensinados pelo venerável
sábio Lao-Nai-hsüan; além disso, durante um período de vários anos havia posto
em prática a peculiar técnica do oráculo. A apreensão do sentido vivo do texto
dá à sua versão do I Ching uma profundidade de perspectiva que um conhecimento
exclusivamente acadêmico da filosofia chinesa nunca poderia proporcionar.
Tenho uma enorme dívida para com
Wilhelm pelo esclarecimento que trouxe à complicada problemática do I Ching e
também pelas intuições relativas à sua aplicação prática. Por mais de 30 anos, interessei-me por
essa técnica oracular, ou método de explorar o inconsciente, que pareceu-me de
excepcional significado. Já estava bastante
familiarizado com o I Ching quando conheci Wilhelm no começo da década de 20;
ele confirmou o que eu já sabia, além de ensinar-me muito mais.
Desconheço
a língua chinesa e nunca estive na China. Posso afirmar ao
meu leitor que é muito difícil encontrar o correto modo de acesso a esse
monumento do pensamento chinês tão distante de nossa forma de pensar. De modo a
poder compreender de que trata esse livro, é indispensável deixar de lado
certos preconceitos da mente ocidental. É curioso que um povo tão dotado e inteligente como o chinês nunca
tenha desenvolvido o que chamamos ciência. Nossa ciência,
entretanto, é baseada no princípio da causalidade, o qual é considerado uma verdade
axiomática. Mas uma grande mudança está ocorrendo em nosso ponto de vista. O
que a "Crítica da Razão Pura" de Kant não conseguiu, está sendo
realizado pela física moderna. Os axiomas da causalidade estão sendo abalados
em seus fundamentos: sabemos agora que o que denominamos leis naturais são
meramente verdades estatísticas que supõem, necessariamente, exceções. Ainda
não nos apercebemos que necessitamos do laboratório com suas decisivas
limitações para demonstrar a validade invariável das leis naturais. Se
deixarmos a natureza agir, veremos um quadro muito diferente: o acaso vai
interferir total ou parcialmente em todo o processo, tanto assim que, em
circunstâncias naturais, uma seqüência de fatos que esteja em absoluta
concordância com leis específicas constitui quase uma exceção.
A
mente chinesa, como a vejo trabalhando no I Ching, parece preocupar-se
exclusivamente com o aspecto casual dos acontecimentos. O que chamamos de
coincidência parece ser o interesse primordial desta mente peculiar e o que
cultuamos como causalidade passa quase desapercebido. Devemos admitir que há muito a dizer a respeito da imensa
importância do acaso. Uma quantidade incalculável do esforço do homem visa a
combater e limitar os incômodos ou perigos representados pelo acaso.
Considerações teóricas de causa e efeito freqüentemente parecem fracas e pobres
em comparação com os resultados práticos do acaso. É correto dizer que o
cristal de quartzo é um prisma hexagonal. A afirmação é verdadeira quando se
considera um cristal ideal; entretanto, na natureza não se encontram dois
cristais exatamente iguais, ainda que todos sejam inequivocadamente hexagonais.
A forma concreta, no entanto, parece interessar mais ao sábio chinês que a
forma ideal. O emaranhado de leis naturais que constitui a realidade empírica é
mais significativo para ele que uma explicação causal de fatos que, além disso,
em geral devem ser separados uns dos outros para que possam ser adequadamente
tratados.
A
maneira como o I Ching tende a encarar a realidade parece não favorecer nossa
maneira causal de proceder. O momento concretamente
observado apresenta-se à antiga visão chinesa, mais como um acontecimento
fortuito que o resultado claramente definido de um concordante processo causal
em cadeia. A questão que interessa parece ser a configuração formada por
eventos casuais no momento da observação e de modo nenhum as hipotéticas razões
que aparentemente justificam a coincidência. Enquanto a mente ocidental
cuidadosamente examina, pesa, seleciona, classifica e isola, a visão chinesa do
momento inclui tudo até o menor e mais absurdo detalhe, pois tudo compõe o
momento observado.
Assim
ocorre quando são jogadas as três moedas, ou quando se contam as 49 varetas;
esses detalhes casuais entram no quadro do momento de observação e fazem parte
dele - uma parte que para nós é insignificante,
porém para a mente chinesa é de suma importância. Seria para nós uma afirmação
banal e quase sem sentido (pelo menos à primeira vista) dizer que tudo que
acontece num determinado momento tem inevitavelmente a qualidade peculiar
àquele momento. Esse não é um argumento abstrato mas, ao contrário, muito
prático. Alguns especialistas são capazes de determinar só pelo aspecto, gosto
e comportamento de um vinho a sua procedência e o ano de sua origem. Existem
conhecedores de antigüidades que podem afirmar com extraordinária precisão a
data, o lugar de origem e o autor de um "objet d´art'' ou de um móvel,
simplesmente olhando-os. Existem astrólogos que podem dizer a uma pessoa, sem nenhum
conhecimento prévio, a data de seu nascimento, qual era a posição do sol e da
lua, e qual o signo que se encontrava sobre o horizonte no momento de seu
nascimento. Diante de tais fatos é preciso admitir que os momentos podem deixar
marcas duradouras.
Em
outras palavras, quem quer que tenha inventado o I Ching estava convencido de
que o hexagrama obtido num determinado momento coincidia com esse momento tanto em qualidade quanto em tempo. Para ele o hexagrama era o intérprete do momento no qual
era tirado - mais que as horas do relógio ou as divisões de um calendário -,
uma vez que o hexagrama era compreendido como sendo o indicador da situação
essencial que prevalecia no momento de sua origem.
Essa suposição envolve um certo
princípio curioso que denominei sincronicidade,3 conceito este que formula um ponto de vista
diametralmente oposto ao da causalidade. A causalidade enquanto uma verdade
meramente estatística não absoluta é uma espécie de hipótese de trabalho sobre
como os acontecimentos surgem uns a partir dos outros, enquanto que, para a
sincronicidade, a coincidência dos acontecimentos, no espaço e no tempo,
significa algo mais que mero acaso, precisamente uma peculiar interdependência
de eventos objetivos entre si, assim como dos estados subjetivos (psíquicos) do
observador ou observadores.
O
pensamento tradicional chinês apreende o cosmos de um modo semelhante ao do
físico moderno, que não pode negar que seu modelo do mundo é uma estrutura
decididamente psicofísica. O fato microfísico inclui o
observador tanto quanto a realidade subjacente ao I
Ching abrange a subjetividade, isto é, as condições psíquicas
dentro da totalidade da situação momentânea. Assim como a causalidade descreve
a seqüência dos acontecimentos, a sincronicidade, para a mente chinesa, lida
com a coincidência de eventos.
O ponto de vista causal nos
relata uma dramática história sobre como D chegou à existência: originou-se de
C que existia antes de D, e C, por sua vez, teve um pai, B, etc. Por outro
lado, a visão da sincronicidade tenta produzir uma representação igualmente
significativa da coincidência. Como é que A, B, C, D, etc. aparecem todos no
mesmo momento e no mesmo lugar? Isso acontece, em primeiro lugar, porque os
eventos físicos A e B são da mesma qualidade dos eventos psíquicos C e D, e
ainda porque todos são intérpretes de uma única e mesma situação momentânea.
Assume-se que a situação representa um quadro legível ou compreensível.
Os
64 hexagramas do I Ching são o instrumento pelo qual se pode determinar o
significado de 64 situações diferentes, porém típicas. Essas interpretações são equivalentes a explicações
causais. A conexão causal é estatisticamente necessária e pode, portanto, ser
submetida à experiência. Uma vez que as situações são únicas e não podem ser
repetidas, não parece ser possível, em condições normais,4 realizar
experiências com a sincronicidade. No I Ching, o único critério de validade da
sincronicidade é a opinião do observador de que o texto do hexagrama eqüivale a
uma interpretação fiel de sua condição psíquica. Supõe-se que a queda das
moedas ou o resultado da divisão do conjunto de varetas de caule de milefólio é
o que necessariamente deve ser uma "situação" dada, já que qualquer
coisa que aconteça naquele momento pertence a ele como parte indispensável do
quadro. Se um punhado de fósforos é jogado no chão, eles formam o padrão
característico daquele momento. Porém, uma verdade tão óbvia como essa só
revela seu caráter significativo se for possível ler o padrão e verificar sua
interpretação, em parte pelo conhecimento, do observador, da situação objetiva
e da subjetiva e, em parte, pelo caráter dos fatos subsequentes. Obviamente
esse não é um procedimento que atraia uma mente crítica, acostumada à
verificação experimental de fatos ou à evidência factual. Mas para alguém que
goste de olhar o mundo segundo a perspectiva da antiga China, o I Ching pode
exercer alguma atração.
Meu argumento, tal como foi
exposto acima, jamais, é claro, ocorreu à mente chinesa. Ao contrário, de
acordo com a antiga tradição, são "agentes espirituais", atuando de
uma forma misteriosa, que fazem com que as varetas de caule de milefólio dêem
uma resposta significativa.5 Esses poderes constituem como que a
alma viva do livro, que é, portanto, uma espécie de ser vivo, e a tradição
supõe que se podem fazer perguntas ao I Ching e esperar receber respostas
inteligentes. Ocorreu-me, portanto, que talvez interesse ao leitor não iniciado
ver o I Ching operando. Com esse propósito realizei uma experiência
rigorosamente de acordo com a concepção chinesa: personifiquei, de certo modo,
o livro, perguntando seu julgamento sobre sua situação atual, isto é, sobre
minha intenção de apresentá-lo à mente ocidental. Ainda que esse procedimento se enquadre
perfeitamente nas premissas da filosofia Taoísta, para nós ele parece demasiado
extravagante. Entretanto, nem mesmo o insólito dos delírios doentios ou
superstições primitivas jamais me chocaram. Sempre tentei permanecer livre de
preconceitos e curioso - rerum
novarum cupidus. Por que não ousar um diálogo
com um antigo livro que se propõe como algo vivo? Não pode haver mal nenhum
nisso, e o leitor poderá observar um procedimento psicológico que tem sido
posto em prática vezes e mais vezes através dos milênios da civilização chinesa,
representando para homens como Confúcio ou Lao-tse tanto a expressão suprema da
autoridade espiritual quanto um enigma filosófico. Utilizei
o método de moedas e a resposta obtida foi o hexagrama 50 - Ting, O CALDEIRÃO.
De acordo com a maneira como foi
formulada minha pergunta, deve-se entender o texto do hexagrama como se o
próprio I Ching fosse a pessoa que fala. Assim, ele descreve a si próprio como
um caldeirão, isto é, como um recipiente de ritual contendo comida preparada.
Deve-se entender comida, aqui, como alimento espiritual.
Wilhelm diz a respeito:
"O Ting, enquanto um utensílio pertencente a uma civilização
refinada, sugere o cuidado e a alimentação dos homens capazes, o que resulta em
benefício da nação... Aqui a cultura atinge sua culminância na religião. O Ting
serve para a oferenda de sacrifícios a Deus. Os mais elevados valores terrenos
devem ser oferecidos em sacrifício a Deus... A suprema revelação de Deus
encontra-se nos profetas e nos santos. Venerá-los é, na verdade, venerar a
Deus. Os desígnios de Deus, manifestados através deles, devem ser aceitos com
humildade".
Seguindo nossa hipótese, devemos concluir
que aqui o I Ching está testemunhando a respeito de si mesmo.
Quando alguma das linhas de um
hexagrama dado tem o valor de seis ou nove, significa que são especialmente
enfatizadas, e que, por isso, são importantes na interpretação.6 Em
meu hexagrama os "agentes espirituais" enfatizaram com um nove as
linhas na segunda e terceira posições. Diz o texto:
Nove na segunda posição significa:
Há alimento no Ting.
Meus companheiros têm inveja,
mas nada podem contra mim.
Boa fortuna.
Assim, o I Ching diz de si
mesmo: "Eu
contenho alimento (espiritual)". Como a
participação em algo grande sempre desperta inveja, o coro dos invejosos7
é parte da cena. Os
invejosos querem despojar o I Ching daquilo que ele possui de grandioso, isto
é, procuram roubar ou destruir o seu significado. Mas essa
hostilidade é em vão. Sua riqueza de significado está assegurada, isto é, o I
Ching está seguro de suas positivas conquistas, as quais ninguém lhe pode
tirar. O texto continua:
Nove na terceira posição significa:
A alça do Ting está alterada.
Ele é impedido em suas atitudes.
A gordura do faisão não é comida.
Quando a chuva cair, o remorso desaparecerá.
A boa fortuna virá ao final.
A alça (em alemão Griff) é a
parte pela qual o Ting pode ser segurado (gegriffen). Portanto, significa o
conceito8 (Begriff) que se tem do I Ching (o Ting). No decorrer do
tempo, esse conceito aparentemente mudou, de modo que hoje já não podemos
apreender (begreifen) o I Ching. Assim,
"ele é impedido em suas atitudes". Já não somos mais amparados pelo
sábio conselho e pela profunda visão intuitiva do oráculo; por isso, não mais
encontramos nosso caminho através das complexidades do destino e da escuridão
de nossa própria natureza. Já não mais se come a gordura do
faisão, isto é, a melhor e mais rica parte de um bom prato. Mas quando,
finalmente, a terra sequiosa novamente receber a chuva, isto é, quando esse
estado de carência for superado, o "remorso", isto é, a tristeza pela
perda da sabedoria tiver cessado, virá a tão esperada oportunidade.
Wilhelm comenta: "Isso descreve alguém que, em meio a uma
cultura muito desenvolvida, encontra-se numa posição em que não é notado nem
reconhecido. Isso é um grande obstáculo à sua atuação". O I Ching parece
estar lamentando que suas excelentes qualidades não sejam reconhecidas e
portanto permanecem inexploradas. Conforta-se com a esperança de recuperar, em
breve, o reconhecimento.
A resposta dada, nessas duas
linhas de destaque, à pergunta que formulei ao I Ching não requer nenhuma
sutileza especial de interpretação, nenhum artifício, nenhum conhecimento
incomum. Qualquer pessoa com um pouco de bom senso pode compreender o
significado da resposta; é a resposta de alguém que tem uma boa opinião sobre
si próprio, mas cujo valor não é pela maioria reconhecido, nem sequer
amplamente conhecido. Quem responde tem uma noção
interessante sobre si mesmo: se vê como um recipiente no qual as oferendas ao
sacrifício são trazidas aos deuses, a comida do ritual destinada à sua
alimentação. Concebe a si próprio como um utensílio de culto destinado a prover
o alimento espiritual para os elementos ou forças inconscientes ("agentes
espirituais") que foram projetados como deuses - em outras palavras, para
dar a essas forças a atenção que elas necessitam para desempenhar seu papel na
vida do indivíduo. Na realidade, esse é o significado original da palavra "religio"
- uma cuidadosa observação e consideração (de ''relegere")9 do
numinoso.
O método do I Ching leva
realmente em consideração a oculta qualidade individual existente nas coisas e
nos homens e também no nosso próprio inconsciente. Interroguei o I Ching como
fazemos com alguém a quem estamos prestes a apresentar a nossos amigos:
perguntamos se isso seria ou não agradável a ele. O I Ching, como resposta,
fala de seu significado religioso, do fato de ser desconhecido
e mal interpretado na atualidade e sua esperança de voltar a ocupar um lugar de
honra - essa última parte obviamente
como uma direta menção ao meu prefácio10 ainda não redigido e
sobretudo à tradução para o inglês. Essa parece ser uma reação perfeitamente
compreensível, tal como se poderia esperar de uma pessoa numa situação similar.
Mas como surgiu essa reação? Porque eu joguei três pequenas moedas ao
ar e as deixei cair, rodar e parar em cara ou coroa, conforme o caso. Esse curioso fato de que uma reação que faz sentido surja
de uma técnica que, aparentemente, exclui, de início, todo e qualquer sentido,
é a grande conquista do I Ching. O exemplo que acabo de dar não é único,
respostas significativas são a regra. Sinólogos ocidentais e importantes
eruditos chineses deram-se ao trabalho de informar-me que o I Ching é uma
coleção de "fórmulas mágicas" obsoletas. No decorrer destas
conversas, meu informante algumas vezes admitiu ter consultado o oráculo
através de um adivinho, geralmente um monge Taoísta. Naturalmente isto "só
poderia ser bobagem". Mas
o estranho é que a resposta obtida aparentemente coincidia, de um modo notável,
com o ponto cego psicológico do consulente.
Concordo com o pensamento
ocidental que seriam possíveis inúmeras respostas à minha pergunta e certamente
não posso afirmar que outra resposta não terá sido igualmente significativa.
Entretanto, a resposta obtida foi a primeira e única; nada sabemos sobre outras
possíveis respostas. Esta
me agradou e satisfez. Fazer a mesma pergunta uma
segunda vez teria sido falta de tato, por isso não a fiz: "o mestre só
fala uma vez". O opressivo enfoque pedagógico que pretende enquadrar os
fenômenos irracionais dentro de um padrão racional preconcebido é anátema para
mim. Na realidade, coisas assim como essa resposta devem permanecer tal como
eram em sua primeira aparição, pois só então sabemos o que faz a natureza
quando deixada em si mesma sem ser perturbada pela intromissão do homem. Não se
deve recorrer a cadáveres para estudar a vida. Além disso, uma repetição da
experiência é impossível pelo simples motivo de que a situação original não
pode ser reconstruída. Portanto,
em cada caso há apenas uma primeira e única resposta.
Voltemos ao próprio hexagrama.
Não há nada estranho no fato de que todo o Ting, O CALDEIRÃO, amplie os temas
propostos pelas duas linhas ressaltadas.11 A primeira linha do
hexagrama diz:
Um Ting com os pés para o alto, emborcado.
É favorável remover o conteúdo estagnado.
Uma concubina é aceita em virtude de seu filho.
Nenhuma culpa.
Um caldeirão que se encontra de
cabeça para baixo está fora de uso. Logo, o I Ching é como um caldeirão que não
está sendo usado. Virá-lo ao contrário serve para eliminar o conteúdo
estagnado, como diz a linha. Assim como um homem toma uma concubina quando sua
esposa não tem filho, recorre-se ao I Ching quando não se encontra outra saída.
Apesar do status quase legal da concubina na China, na realidade ele não é mais
que um recurso de certa forma secundário; assim também o processo mágico do
oráculo é um recurso que pode ser usado com um objetivo mais elevado. Não há
culpa, embora se trate de um recurso excepcional.
A segunda e terceira linhas já
foram discutidas.
A quarta linha diz:
O Ting com as pernas quebradas.
A refeição do príncipe é derramada,
e nódoas recaem sobre sua pessoa.
Infortúnio.
Aqui o Ting foi posto em uso,
mas evidentemente de uma forma bastante canhestra, isto é, abusou-se do oráculo ou o interpretaram
erroneamente. Deste modo, perdeu-se o
alimento divino e se expôs à vergonha. Legge traduz da seguinte forma: "o
sujeito em questão irá coroar de vergonha". O abuso de um utensílio de
culto tal como o Ting (isto é, o I Ching) é uma profanação grosseira.
Evidentemente, o I Ching está insistindo aqui em sua dignidade como um objeto
de ritual e protestando contra sua utilização profana.
A quinta linha diz:
O Ting tem alças amarelas e argolas de ouro.
A perseverança é favorável.
O I Ching parece ter encontrado
uma nova e correta (amarela) compreensão, isto é, um novo conceito (Begriff),
através do qual pode ser apreendido. Esse conceito é valioso (de ouro). Há
realmente uma nova edição em inglês, que torna o livro mais acessível que antes
ao mundo ocidental.
A sexta linha diz:
O Ting tem argolas de jade.
Grande boa fortuna!
Nada que não seja favorável.
O jade se distingue pela sua
beleza e suave brilho. Se as alças são de jade, todo o recipiente será realçado
em sua beleza, honra e valor.
Aqui o I Ching expressa-se não
só como estando muito satisfeito, mas também bastante otimista. Pode-se apenas
esperar futuros acontecimentos e, até lá, contentar-se com a agradável
conclusão de que o I Ching aprova a nova edição.
Demonstrei nesse exemplo de
forma tão objetiva quanto me foi possível como o oráculo atua num caso dado.
Evidentemente, o processo varia um pouco segundo a forma como a pergunta é
formulada. Se, por exemplo, uma pessoa encontra-se numa situação confusa, ela
própria pode aparecer no oráculo como aquela que fala, ou se a pergunta diz
respeito a um relacionamento com outra pessoa, essa pessoa pode aparecer como
aquela que fala. Entretanto, a identidade de quem fala não depende inteiramente
da maneira pela qual a pergunta foi formulada, da mesma forma que nossas
relações com nossos semelhantes nem sempre são determinadas por estes últimos.
Freqüentemente nossas relações
dependem quase que exclusivamente de nossas próprias atitudes, mesmo que não
estejamos conscientes desse fato. Assim sendo, se um indivíduo não tem
consciência do seu papel num relacionamento, poderá haver uma surpresa à sua
espera, ao contrário das expectativas, ele próprio pode aparecer como o agente
principal, como às vezes é indicado, de forma inequívoca, pelo texto. Pode
ocorrer também que tomemos uma situação demasiadamente a sério e a consideremos
de extrema importância, enquanto que a resposta que obtemos ao consultar o I
Ching chama a atenção para algum outro aspecto inesperado, implícito na
pergunta.
Tais ocorrências podem, ao
início, levar-nos a pensar que o oráculo é ardiloso. Diz-se que Confúcio
recebeu uma só resposta imprópria, isto é, o hexagrama 22, Graciosidade - um hexagrama totalmente estético. Isso
lembra o conselho dado a Sócrates por seu "daimon": "Você
deveria fazer mais música" - e a partir de então Sócrates começou a tocar
flauta. Confúcio e Sócrates concorrem ao primeiro lugar no que se refere a uma
perspectiva racional e uma atitude pedagógica diante da vida; mas é pouco
provável que um deles tenha se preocupado em "embelezar a barba em seu
queixo", como aconselha a segunda linha desse hexagrama. Infelizmente a
razão e a pedagogia, com frequência, carecem de encanto e graça, e assim,
afinal, o oráculo talvez não se tenha enganado.
Voltemos uma vez mais ao nosso
hexagrama. Apesar do I Ching não só parecer estar satisfeito com sua nova
edição, como até demonstra um enfático otimismo, isso ainda não prediz o efeito
que terá no público que se pretende atingir.
Já que temos em nosso hexagrama
duas linhas yang enfatizadas pelo valor numérico nove, estamos em condições de
averiguar que tipo de prognóstico o I Ching formula para si próprio. Segundo a
concepção da antigüidade, as linhas indicadas por um seis ou um nove possuem
uma tensão interna tão grande que faz com que se transformem em seus opostos,
isto é, yang em yin e vice-versa. Através dessa transformação, nós obtemos no
presente caso o hexagrama 35, Chin,
PROGRESSO.
O tema desse hexagrama é
relativo a alguém que encontra toda sorte de vicissitudes do destino em sua
ascensão, e o texto descreve como ele deve se comportar. O I Ching está nessa
mesma situação: eleva-se como o sol e se dá a conhecer, mas é repudiado e não
inspira confiança - ele está "progredindo porém em tristeza".
Entretanto, "obtém-se grande felicidade da parte de seu ancestral". A
psicologia nos pode ajudar a elucidar essa passagem obscura. Em sonhos e nos
contos de fadas, a avó, ou ancestral, freqüentemente representa o inconsciente,
pois esse último, no homem, contém o componente feminino da psique. Se o I
Ching não é aceito pelo consciente, pelo menos o inconsciente, em parte, o
aceita e o I Ching está mais ligado ao inconsciente que à atitude racional da
consciência. Já que o inconsciente é freqüentemente representado em sonhos por
uma figura feminina, poderia ser essa, no caso, a explicação. A figura feminina
pode ser interpretada como a tradutora, que deu ao livro cuidados maternais, e
o I Ching poderá facilmente considerar isso como uma "grande
felicidade". O I Ching prevê a compreensão geral, mas teme ser mal usado.
"Progresso como o de um roedor." Mas está atento à advertência,
"Não se deixe levar por ganho ou perda". Ele permanece livre de
"partidarismos" e não se impõe a ninguém.
O I Ching, portanto, encara seu
futuro no mercado editorial americano tranqüilamente, exprimindo-se aqui como o
faria qualquer pessoa sensata a respeito do destino de uma obra tão
controvertida. Essa profecia é tão razoável e cheia de bom senso, que seria
difícil pensar-se em resposta mais apropriada. Tudo isso ocorreu antes de eu ter escrito
os parágrafos anteriores. Quando cheguei a esse ponto, quis conhecer a atitude
do I Ching diante da nova situação. As circunstâncias tinham sido alteradas
pelo que havia escrito, uma vez que eu mesmo tinha entrado em cena e, portanto,
esperava ouvir algo referente à minha própria ação. Devo confessar que enquanto
escrevia este prefácio não me sentia muito feliz pois, como alguém com senso de
responsabilidade em relação à ciência, não tenho o hábito de afirmar algo que
não possa provar, ou pelo menos, apresentar de maneira aceitável à razão. É
realmente uma tarefa duvidosa tentar apresentar a um público moderno, crítico,
um conjunto de arcaicos "encantamentos mágicos", com a intenção de
torná-los mais ou menos aceitáveis. Empreendi essa tarefa porque julgo que há
mais, no antigo modo de pensar chinês, do que parece à primeira vista. Porém, é
para mim constrangedor ter que apelar à boa vontade e à imaginação do leitor,
já que tenho que introduzi-lo na obscuridade de um antiquíssimo ritual mágico.
Infelizmente conheço muito bem os argumentos que podem levantar contra ele. Não
temos sequer certeza de que o barco que nos há de levar através de mares
desconhecidos não tenha uma falha em algum lugar. Não poderá estar corrompido o
velho texto? Será precisa a tradução de Wilhelm? Não estaremos enganados em
nossas explicações?
O I Ching a todo instante insiste no
autoconhecimento. O método pelo qual isso deve ser alcançado está aberto a todo
tipo de aplicações errôneas e por isso não convém aos frívolos e imaturos nem
aos intelectuais e racionalistas. Só é apropriado àqueles afeitos ao pensar, à
reflexão e aos quais apraz meditar sobre o que fazem e o que lhes ocorre -
predileção essa que não deve ser confundida com o mórbido cismar do
hipocondríaco. Como indiquei acima, não tenho resposta para a infinidade de
problemas que surgem quando procuramos harmonizar o oráculo do I Ching com
nossos cânones científicos aceitos. Mas é desnecessário dizer que nada
"oculto" é passível de ser deduzido. Minha posição nessas questões é
pragmática e as grandes disciplinas que me ensinaram a utilidade prática desse
ponto de vista são a psicoterapia e a psicologia médica. Provavelmente em
nenhum outro campo temos que levar em conta tantas incógnitas, e em nenhuma
outra área temos que ter por hábito adotar métodos que funcionam, ainda que,
por longos períodos, não saibamos por que eles funcionam. Curas inesperadas
podem surgir de métodos presumivelmente confiáveis. Na exploração do
inconsciente deparamos com coisas muito estranhas, das quais um racionalista se
afastaria com horror, afirmando, depois, que nada viu. A plenitude irracional
da vida ensinou-me a nunca descartar nada, mesmo quando vão contra todas as
nossas teorias (que mesmo na melhor das hipóteses têm vida tão curta) ou quando
não admitem nenhuma explicação imediata. Naturalmente isso é inquietante e não
sabemos, com certeza, se a indicação da bússola está correta ou não, porém a
segurança, a certeza e a paz não conduzem a descobertas. O mesmo ocorre com
esse método divinatório chinês. O método aponta claramente para o
autoconhecimento, ainda que em todas as épocas tenha sido usado num sentido
supersticioso.
É claro que estou de todo convencido do
valor do autoconhecimento, mas valerá a pena recomendar semelhante introspecção,
quando os mais sábios homens em todos os tempos pregaram essa necessidade sem
êxito? Este livro representa, e isto é óbvio até mesmo para os mais
preconceituosos, uma longa exortação a uma cuidadosa análise de nosso próprio
caráter, a atitudes e motivações. Essa posição me atrai e levou-me a escrever o
prefácio. Só uma vez antes havia me pronunciado acerca do problema do I Ching -
foi durante um discurso em memória de Richard Wilhelm. Afora esta ocasião,
mantive um discreto silêncio. Não é tarefa fácil descobrir o caminho para
penetrar numa mentalidade distante e misteriosa como a que perpassa o I Ching.
Não se pode menosprezar tão facilmente grandes pensadores como Confúcio e
Lao-tse, quando se é capaz de avaliar a qualidade dos pensamentos que eles representam;
tampouco se pode ignorar o fato de que o I Ching era sua principal fonte de
inspiração. Sei que anteriormente não teria ousado expressar-me de forma tão
explícita sobre assunto tão incerto. Posso correr esse risco porque estou agora
em minha oitava década e as volúveis opiniões dos homens já não mais me
impressionam; os pensamentos dos velhos mestres são mais valiosos para mim que
os preconceitos filosóficos da mente ocidental.
Não gosto de incomodar meu leitor com essas
considerações pessoais, mas como já indiquei, nossa própria personalidade está,
com frequência, envolvida na resposta do oráculo. Na verdade, ao formular minha
pergunta eu como que, de fato, convidava o oráculo a comentar diretamente minha
ação. A resposta foi o hexagrama 29
- K´an, O ABISMAL. Ênfase especial foi dada à linha na terceira posição, pelo
fato de ela ser designada por um seis.
Essa linha diz:
Para adiante e para trás.
Abismo sobre abismo.
Num perigo como esse, detenha-se ao início e espere.
Senão você cairá num buraco no abismo.
Não atue assim.
Anteriormente eu teria aceito
incondicionalmente o conselho "Não atue assim" e teria recusado dar
minha opinião sobre o I Ching, pelo simples fato de não ter nenhuma. Mas agora,
o conselho pode servir como um exemplo do modo como funciona o I Ching. É um
fato, se começamos a pensar nisso, que os problemas do I Ching representam
"abismo sobre abismo", e inevitavelmente deve-se "parar primeiro
e esperar" em meio aos perigos de uma especulação demasiado vaga e desprovida
de senso crítico; de outro modo, realmente nos perderíamos na escuridão. Pode
haver uma posição intelectualmente mais incômoda que a de flutuar na névoa de
possibilidades não comprovadas, não sabendo se o que estamos vendo é verdade ou
ilusão? Essa é a atmosfera quase onírica do I Ching, e nela não encontramos
nada em que possamos confiar, exceto o nosso próprio e tão falível julgamento
subjetivo. Não posso deixar de reconhecer que essa linha representa muito
apropriadamente o sentimento com o qual redigi as páginas precedentes. As
reconfortantes palavras iniciais desse hexagrama são igualmente apropriadas -
"Se você é sincero, terá o sucesso em seu coração" - porque indicam
que o decisivo aqui não é o perigo exterior, mas a condição subjetiva, isto é,
se acreditamos sermos "sinceros" ou não.
O hexagrama compara a ação
dinâmica nessa situação ao comportamento da água corrente, que não teme nenhum
lugar perigoso e mergulha sobre rochedos e preenche os fossos que encontra em
seu curso (K´an também significa água). Essa é a maneira como o "homem
superior" age e "exerce o ofício de ensinar".
K´an é, sem dúvida, um dos
hexagramas menos agradáveis. Descreve uma situação na qual alguém parece
encontrar-se em sério perigo de ser apanhado em toda sorte de armadilhas. Do
mesmo modo que, ao interpretar um sonho, é preciso seguir o texto do sonho com
a máxima exatidão, assim, ao consultar o oráculo, é preciso ter em mente a
formulação da pergunta, pois essa impõe um limite definido à interpretação da
resposta. A primeira linha do hexagrama mostra a presença do perigo: "No
abismo se cai num fosso". A segunda linha faz o mesmo e acrescenta o
conselho: "Deve-se procurar alcançar apenas pequenas coisas". Eu
aparentemente me antecipara a esse conselho, limitando-me, no prefácio, a uma
demonstração de como o I Ching funciona na mente chinesa e renunciando ao
projeto mais ambicioso, de escrever um comentário psicológico sobre todo o
livro.
A quarta linha diz:
Uma jarra de vinho, uma tigela de arroz,
louça de barro, simplesmente entregues pela janela.
Isso por certo não implica em culpa.
Wilhelm faz o seguinte
comentário a respeito:
"Em
condições normais, o funcionário que aspirava a um cargo devia trazer certas
oferendas e recomendações antes de ser nomeado. Tudo aqui está simplificado ao
máximo. As oferendas são modestas, não há ninguém para recomendá-lo e ele tem
de fazer sua própria apresentação. No entanto, não deve se envergonhar por
isso, se existir apenas a sincera intenção de prestar uma ajuda mútua no
perigo".
É como se o livro fosse, num
certo sentido, o sujeito dessa linha.
A quinta linha dá continuidade
ao tema da limitação. Observando-se a natureza da água, verifica-se que ela
preenche um fosso somente até a borda e prossegue, então, fluindo. Não fica
contida ali.
O abismo não está cheio a ponto de
transbordar, está cheio apenas até a borda.
Mas, se tentados pelo perigo e
em virtude apenas da insegurança, insistíssemos tentando forçar uma convicção
através de um esforço excepcional, como no caso de elaborados comentários ou
coisas semelhantes, atolaríamos nas dificuldades que a linha ao alto descreve
com grande precisão como condições que tolhem e aprisionam. Na verdade, a
última linha muitas vezes mostra as conseqüências decorrentes de não se levar a
sério o significado do hexagrama. Em nosso hexagrama temos um seis na terceira
posição. Essa linha yin de crescente tensão transforma-se em uma linha yang e
assim gera um novo hexagrama, mostrando uma nova possibilidade ou tendência.
Temos agora o hexagrama 48 - Ching, O POÇO. O fosso cheio de água já não
significa mais perigo e sim algo benéfico, um poço.
Assim o homem superior incentiva o povo em seu trabalho,
exortando as pessoas a se ajudarem mutuamente.
A imagem de pessoas ajudando-se
uma às outras pareceria referir à reconstrução do poço, pois este está quebrado
e cheio de lama. Nem mesmo os animais bebem nele. Há peixes vivendo nele e
pode-se apanhá-los, mas o povo não é utilizado para beber, isto é, para as necessidades
humanas. Essa descrição lembra o Ting - O CALDEIRÃO - de cabeça para baixo e
fora de uso, que precisa receber uma nova alça. Além disso, esse poço, como o
Ting, está limpo, mas ninguém bebe dele.
Este é o pesar de meu coração,
pois se poderia usufruir dele.
O perigoso fosso cheio de água
ou o abismo referiam-se ao I Ching e o poço também, porém esse último tem um
sentido positivo: contém as águas da vida. Deveria ser posto outra vez em uso.
Mas não se possui nenhuma noção (Begriff) sobre ele, nem utensílio algum para
extrair a água; o cântaro está quebrado e vaza. O Ting precisa de novas alças
pelas quais se possa segurá-lo, e o poço também deve receber um revestimento,
pois contém "uma fonte límpida e fresca, da qual se pode beber". Pode-se
tirar água dele porque é "digno de confiança".
Está claro neste presságio que o
sujeito que fala é outra vez o I Ching, representando-se como uma fonte de água
da vida. O hexagrama precedente descreve com detalhes o perigo que ameaça a
pessoa que acidentalmente cai num fosso dentro do abismo. Ela deve procurar a
saída, para poder descobrir que se trata de um velho poço em ruínas, enterrado
na lama, mas passível de ser restituído ao uso novamente.
Submeti duas perguntas ao método
do acaso representado pelo oráculo das moedas, a segunda pergunta tendo sido
formulada depois de eu ter escrito minha análise da resposta à primeira. A
primeira pergunta como que se dirigia ao I Ching: o que tinha ele a dizer sobre
minha intenção de escrever um prefácio? A segunda pergunta referia-se à minha
própria ação, ou melhor, à situação na qual eu era o sujeito agente que
discutira o primeiro hexagrama. À primeira pergunta o I Ching respondeu
comparando-se a um caldeirão, um recipiente de ritual que necessitava de renovação
e que estava encontrando apenas uma questionável aprovação da parte do público.
A resposta à segunda pergunta dizia que eu me encontrava numa dificuldade pois
o I Ching representava um profundo e perigoso fosso com água no qual
poder-se-ia facilmente atolar. No entanto, o fosso com água revelou ser um
velho poço que precisava apenas ser restaurado para tornar-se útil novamente.
Esses quatro hexagramas são, em
seus elementos centrais, coerentes entre si quanto ao tema (recipiente, fosso,
poço), e no que se refere ao conteúdo intelectual parecem ser significativos.
Se um ser humano desse tais respostas, eu, como psiquiatra, teria de
considerá-lo mentalmente sadio, pelo menos, com base no material apresentado.
De fato, eu não teria sido capaz de descobrir nada de delirante, de
oligofrênico ou esquizofrênico nas quatro respostas. Diante da extrema
antigüidade do I Ching e de sua origem chinesa, não posso considerar anormal
sua linguagem arcaica, simbólica e floreada. Ao contrário, eu teria felicitado
essa hipotética pessoa pela amplitude de sua intuição do estado de dúvida que
não chegara a expressar. Por outro lado, qualquer pessoa inteligente e versátil
pode torcer tudo isso e mostrar como eu projetei os meus conteúdos subjetivos
no simbolismo dos hexagramas. Semelhante crítica, ainda que catastrófica do
ponto de vista do racionalismo ocidental, não afeta a função do I Ching. Ao
contrário, o sábio chinês me diria sorrindo: "Não percebe quão útil é o I
Ching para fazer com que você projete num simbolismo abstruso seus pensamentos,
até então não percebidos? Você poderia ter escrito seu prefácio sem jamais
perceber a avalanche de mal-entendidos que o mesmo poderia desencadear".
O ponto de vista chinês não se
preocupa com a atitude que se adota frente ao funcionamento do oráculo. Somos
unicamente nós que estamos confusos, porque tropeçamos repetidas vezes em nosso
preconceito, ou seja, a noção de causalidade. A antiga sabedoria oriental
enfatiza o fato de que o indivíduo inteligente compreende seus próprios
pensamentos, mas não se preocupa de modo algum com a forma como o faz. Quanto
menos se pense sobre a teoria do I Ching melhor se dormirá.
Parece-me que com base nesse
exemplo, um leitor sem preconceitos estaria agora em condições de, pelo menos,
tentar formar uma opinião aproximada sobre o modo de operar do I Ching12.
Mais não se pode esperar de uma
simples introdução. Se, através dessa demonstração, consegui elucidar a
fenomenologia psicológica do I Ching, terei alcançado o meu propósito. Quanto
aos milhares de perguntas, dúvidas e críticas que esse livro extraordinário
suscita, não posso respondê-las. O I Ching não se apresenta com provas e
resultados, não se vangloria de si, nem é de fácil abordagem. Como uma parte da
natureza, espera até ser descoberto. Não oferece fatos, nem poder, porém para
os amantes do autoconhecimento, da sabedoria - se estes existem - parece ser o
livro indicado. Para alguns seu espírito parecerá claro como o dia; para
outros, sombrio como o crepúsculo; e para outros ainda, obscuro como a noite.
Aquele que não o aprecia, não precisa usá-lo e aquele é contra, não é obrigado
a considerá-lo verdadeiro. Que o deixem seguir para o mundo em benefício
daqueles que sejam capazes de discernir seu significado.
ZURIQUE, 1949 C. G.
JUNG
1. O prefácio de
Jung foi redigido a pedido de Cary F. Baynes para a primeira edição da tradução
inglesa do I Ching. Esse prefácio não consta da edição alemã usada para a
presente tradução. O texto de Jung foi traduzido da edição da Bollingen Series
XIX, Princeton University Press, 1972. {Nota da tradução brasileira.)
2. Legge faz o
seguinte comentário sobre o texto explicativo das linhas: "De acordo com
nossas noções, um criador de símbolos deveria ter muito de um poeta, mas
aqueles do Yi nos sugerem apenas uma completa aridez. De um total de mais de
trezentas e cinqüenta, a maior parte das afirmações podem ser consideradas
simplesmente grotescas". (The Sacred Books of the East, XVI:
the Yi King. 2aed. Oxford, Clarendon Press, 1899, p. 22.) A respeito das
"Lições" dos hexagramas, o mesmo autor diz: "Mas por que,
poder-se-ia perguntar, deveriam nos ser transmitidas através de uma tal
disposição de figuras lineares e em tal miscelânea de representações
simbólicas", (Ibid. p. 25.) No entanto, em nenhum trecho é dito se Legge
alguma vez se deu ao trabalho de colocar o método à prova, num teste prático.
3. Cf. "Sincronicity: An
Acausal Connecting Principie". The Structure and Dynamics of the Psyche. (Col. das obras de C. G. Jung,
v. 8.)
4. Cf. J. B. Rhine. The Reach of
the Mind. New York - London,
1928.
5. Ele são shên,
isto é, "semelhantes a um espírito". "Os céus produziram coisas
semelhantes a um espírito." (Legge, p. 41.)
6. V. a explicação
do método no texto de Wilhelm sobre o uso oracular.
7. Por exemplo, os
invidi ("o invejoso") são uma imagem bastante freqüente nos velhos
livros latinos de alquimia, principalmente na Turba Philosophorum (séc. XI ou
XII).
8. Do latim
Concipere, ' segurar junto", isto é, num recipiente: CONCIPERE deriva de
CAPERE, "tomar", "segurar".
9. Esta é a
etimologia clássica. A derivação de RELIGIO de RELIGARE, "ligar à",
originou-se com os Padres da Igreja.
10. Na verdade, eu
fiz essa experiência antes de escrever o prefácio.
11. Os chineses
interpretam somente as linhas móveis obtidas através do uso do oráculo. Eu
concluí que na maioria dos casos todas as linhas do hexagrama são relevantes.
12. Será útil ao
leitor ler juntos os quatro hexagramas que se encontram no texto, assim como seus
relevantes comentários.
Veja os Hexagramas citados aqui:
Hexagrama 50
Hexagrama 22
Hexagrama 35
Hexagrama 29
Hexagrama 48
Minha tese de doutora, pela UFRJ, foi uma leitura junguiana da ficção da escritora Lya Luft, sobre o arquétipo materno e as imagens e símbolos usados por ela. Achei excelente todas os artigos aqui desenvolvidos. Estou começando a aprender Tai Chi Chuan. Parabéns.
ResponderExcluirEliane F.C.Lima (blogues "Literatura em vida 2", "Poema Vivo" e "Conto-gotas")